Archive for outubro, 2015

Falando com a voz de outros

Posted on: outubro 9th, 2015 by José Aguiar No Comments

Quando concluí o roteiro do primeiro capítulo de A Infância do Brasil eu estava muito incomodado. Afinal, eu tive que imprimir em meus personagens uma voz extremamente machista. Naquele mundo de quinhentos anos atrás, as mulheres, pelo menos as “importadas” da Europa, era um artigo de consumo. Um meio para se perpetuar uma linhagem, um conceito que particularmente me perturba, pois quando se encara alguém como um objeto, logo ele se torna facilmente descartável. Mas talvez o mais perturbador seja saber que ainda hoje existam homens que enxergam as mulheres de forma semelhante a dos personagens que criei para esse capítulo. Quando pensamos em passado, temos a tendência de achar que o mundo evoluiu. Mas é mais fácil enumerar avanços tecnológicos do que sociais. Certos valores podem ser tão enraizados em nossa formação que podem vir a nos assombrar ainda hoje. Torço que possamos deixar um mundo melhor para os que virão depois de nós. Mas há dias em que visões tão limitadas quanto as que tentei imprimir em minha HQ voltam a nos assombrar. E com muita força.

Assim, espero que no futuro, quando olharem para a nossa civilização, nos achem primitivos. Mas não por preconceito. Mas porque o mundo verdadeiramente seguiu adiante. É o tipo de coisa que penso enquanto faço meu trabalho, seja uma tira, uma HQ curta ou mesmo uma graphic novel. E um projeto como a Infância do Brasil é algo inevitavelmente reflexivo. Pelo menos para mim.

Ao se retratar um período histórico em particular é muito fácil colocar nossa visão contemporânea. Decodificamos mundos passados com valores atuais. E isso passa longe da fidelidade. É fato de que nunca conseguiremos retratar outro tempo tal qual ele realmente era. Se a memória de alguns aninhos atrás já nos trai, o que dizer de tentar remontar lugares, pessoas, diálogos, a partir de meros fragmentos de informação que podemos consultar nos livros? Talvez o mais complicado nesse processo de “reinvenção” do passado seja dar a voz certa a um personagem. Eu não preciso concordar com meus personagens, mas preciso lhes dar o máximo de veracidade possível. Preciso que você acredite neles.

Neste primeiro capítulo de A Infância do Brasil viajamos para algum lugar da segunda metade do século XVI. Aquele era um mundo mais pragmático e com outra moralidade. Feito de pessoas que precisavam ser brutas, de religiosos que precisavam impor alguma espécie de ordem no Novo Mundo. O Brasil sempre foi uma mistura de realidades contrastantes, como bem disse meu personagem Gabriel: “Esta terra que uns dizem ser o paraíso e outros o inferno?”

Para saber mais sobre o contexto histórico do primeiro capítulo desta ficção que criei, acesse aqui no site o texto complementar Século XVI: O nascimento do Brasil

Visualizando o começo

Posted on: outubro 9th, 2015 by José Aguiar No Comments

O complicado de se reconstituir uma casa, uma roupa, ou mesmo o tipo físico dos personagens que compõem um período tão nebuloso quanto o século XVI no Brasil é a falta de registros confiáveis do que de fato existia por aqui naquela época. O que restou das construções de madeira e argila daquele período? Simplesmente nada. O que sabemos exatamente sobre os povos indígenas que conviviam com os colonos? Muito pouco. Os poucos registros feitos pelos Portugueses de então não tinham a preocupação de um Debret, desenhista que só viria registrar nossas paisagens e cotidiano no século XIX. Os colonos nem eram exatamente colonizadores, pois naquele tempo sequer havia interesse real de se fundar uma colônia aqui. O objetivo de se ter europeus vivendo em nossos litoral era basicamente apenas extrair madeira e manter a posse do território. Um dos poucos remanescentes arquitetônicos desse período é a Fortaleza dos Reis Magos, iniciada em 1598, na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. Mas nosso projeto não é sobre feitos militares da história “oficial”, mas sobre a vida de gente comum, especialmente das crianças.

Por esse motivo optei por um traço mais cartunesco para representar especialmente os personagens. Sabemos que o Brasil daquela época era uma terra bruta para os colonos, feita de homens e mulheres com histórias pessoais duras e que viviam aqui em condições precárias.Por isso busquei representar suas feições marcadas, os corpos tortos, as roupas simples, quase trapos. O Cinema deu algumas pistas para montar minha “caricatura” de uma era passada. Filmes como “Desmundo”, “Hans Staden” e até “1492 – a conquista do paraíso” (que não se passa no Brasil, mas está no mesmo período histórico do capítulo) e “A Missão” me ajudaram a pensar como devia ser um morador do Brasil de cerca de quinhentos anos atrás. A partir daí o desafio foi encontrar a minha forma de representá-los. Ao optar por uma linguagem menos “naturalista” deixo para você a tarefa de vestir cada personagem, imaginar as suas texturas, cheiros e trejeitos. Assim, reconstruímos juntos pessoas que talvez pudessem ter existido de fato.